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Sobre "Rua da Padaria", de Bruna Beber [resenha de livro]

Rua da padaria é o primeiro livro de Bruna Beber a discorrer sobre um passado longínquo. Recheado de lembranças e memórias afetuosas, a obra poética possui um estilo lúdico e remete à época da infância.

O livro abre com um poema chamado “o que dói primeiro”, contando sobre a perda de um irmão que “não vem mais brincar”. A tristeza, porém, é quebrada mais adiante, em “esquina parábola”, quando uma menina pede à sua mãe para comer a pipoca e o guaraná da macumba.

Essa troca de chaves entre as dores e as graças da infância é um dos pontos de maior sagacidade de Bruna, que consegue levar os dois sentimentos ajustados quase que num equilíbro perfeito.

A escritora também possui um compasso de escrita neste livro que lembra, de fato, as brincadeiras de crianças. Em “de castigo na merenda”, ela diz:

felicidade é o que tem dentro
das bolinhas de papel
e se arremesso
lá vai ela
pela porta na careca
do inspetor
brinca de pique aposta
corrida numa perna só
quica sobe vira pipa
nos braços livres do céu

(…)

Esse uso das palavras “quica sobe vira pipa” remete ao real movimento da bolinha quicando e subindo, ‘virando pipa no céu’. É um uso que nos faz acompanhar essa bolinha e visualizá-la, até nos confrontar com o seguinte final:

cai de algodão
das nuvens
e de sono nas penas
dos travesseiros
a felicidade é muito mais
desconcertante que a dor.

A frase final “a felicidade é muito mais desconcertante que a dor” apresenta uma quebra com o ritmo inicial do poema. Em um instante, estamos com os olhos e pensamento na bolinha, atravessando o céu e pulando. Mas quando ela cai das nuvens e dorme no chão (ou nos travesseiros), tudo se desfaz. A bolinha caindo é tão frustrante só de lembrar do seu antigo movimento, parece desconcertante. Mais desconcertante que a dor.

No início do livro, após poemas muito bonitos como “a grande alegria dos homens de números”, tem um que ficou muito famoso e já estampou “bios” de redes sociais, já foi posto com a assinatura de Clarice Lispector e até decorou camisetas. O nome dele é “romance em doze linhas” e a ideia é exatamente essa, contar o início de um romance até o fim dele. Os poemas subsequentes são referentes a cada uma dessas linhas: o primeiro poema depois dessa fala sobre a primeira fase/linha de um romance e assim por diante. O título também brinca com o que entendemos de gêneros textuais: um romance, em geral, é longo, mas aqui ele é reduzido a doze linhas.

Bruna sente uma vontade irresistível, como ela mesma coloca, de nomear sentimentos e cores do seu dia-a-dia. Em entrevista, ela conta que gosta de pensar no surrealismo dos dias. Também disse que para ter vontade de escrever, basta caminhar pelas ruas, ainda que o que anteriormente era mais inspiração, agora é mais trabalho.

Nesses poemas que se referem ao “romance em doze linhas”, ela fala tanto da vontade de nomear o que nasce ali, quanto da dificuldade de esconder um sentimento: “morder e quebrar os dentes/ mastigá-los/ fazê-los pó/melhor ainda/ engolir o pó/do que levar/encolhido/um sentimento/o resto pode.” Esconder um sentimento dentro de si mesmo equivale a engolir os próprios dentes, duros, quebradiços, cortantes. Essa ideia é reiterada ainda em “o romantismo”, nos versos “à medida que me lanço/noutra direção/tanto mofo/no que calo”. A boca que não fala se enche de mofo, de teias de aranha, mas essa boca calada também “se lança noutra direção”. Vai-se embora.

O penúltimo poema dessa série, entretanto, faz uma hesitação sobre o fim. Intitulado “o pecúlio”, aqui Bruna dá a entender que apesar de ‘chegar de costas’ ou ‘sair de frente’, está sempre perdida indo ao encontro dessa pessoa tão amada. O último poema subsequente dá um fechamento, uma passada de página, mas ainda assim o que se entende é: existem amores que nos marcam para sempre. Ainda que possamos viver outras histórias, eles serão sempre pontos de inflexão e mudança das nossas vidas. Levamos sempre conosco um pouco daqueles que amamos.

Voltando aos temas mais “infantilizados” que Bruna trata no livro, é interessante notar como ela faz questão de escrever da mesma forma que as crianças falam. Em “maquete”, existem frases como “vô soprá, vô soprá”, ou ainda “fffuuu meu sopro de avião fffuuu” e “fessora”. Esse jeito de expressar na escrita variações percebidas apenas na escuta mostra uma observação cuidadosa da escritora. Das crianças, das salas de aula, das relações professor-aluno, aluno-aluno e dos pequenos insights muitas vezes brilhantes vindos deles. É um estar atento ao trivial, ao singular.

Segundo Bruna, a “Rua da Padaria” era a rua Dr. Manoel Reis, em que residia a padaria “Flor do Centenário”. Sua avó morava nesses arredores e, assim como ela, era frequentadora da padaria. Nessa época, ela tinha 6 ou 7 anos e ficava na casa da avó brincando todas as tardes. O bairro pequeno evocava a ideia de brincadeiras como a pipa (citada no livro) ou o queimado.