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Sobre MOTOMAMI – Rosalía

“Chicá, que dices?” é o que primeiro se escuta em Motomami (2022); uma forma de dizer “Pode repetir, por favor?”, normalmente sucedida pela frase em volume mais alto. O grito que vem depois, com o refrão de “Saoko”, toma conta do ambiente de forma destrutiva, numa aura veloz e arriscada, e compõe a estética urbana reconhecida no clipe da mesma música. Nele, a cantora pilota uma moto, junto com outras mulheres que fazem manobras ao longo da pista – o famoso “dar grau”, em termos mais brasileiros.

Quando perguntada sobre Saoko, ela explicou ao Genius que é uma palavra originada na África, que significa “energia, movimento”, e que sua inspiração também veio do reggaeton “Saoco”, do cantor e rapper Wisin. Em Motomami, o controle está com Rosalía. Ela tem total autoconsciência de tudo o que está fazendo e arriscando ao longo do disco, das referências com que quer trabalhar e do que quer criar a partir delas. De fato, a mensagem é de que ela guia a sua própria transformação e ninguém pode limitar sua capacidade de se modificar, se contradizer e se movimentar.

A estética gamificada também é bem presente, lembrando GTA até mesmo na ideia dos cenários, numa pegada futurista, que se mescla com as alusões a ritmos mais tradicionais como o flamenco e o reggaeton nas músicas. Sonoramente, isso também acontece com o uso de autotune em algumas faixas, acompanhadas das linhas de baixo de sintetizadores estourados. É interessante como “Saoko” ou “Chicken Teryiaki” não seriam vistas com estranheza por quem gosta de funk carioca, já que trabalham com graves e ruídos de forma semelhante, com uma espécie de progressão de velocidades/ritmos.

“Candy”, segunda faixa do disco, mostra mais um aspecto da “mistura” que Rosalía está interessada, trazendo uma interpolação de “Archangel”, do Burial, um dos artistas mais inovadores de música eletrônica hoje – além do repertório amplo da cantora, a capacidade de transformar a melodia do Burial em algo tão autoral é louvável, com o claro ritmo de um reggaeton super pop. “Candy”, junto com a música que vem depois, “La fama”, são talvez as mais pops do álbum. “La fama”, com feat. do The Weeknd, é também um reggaeton, mas mais envolvente e cíclico que o anterior, um convite mesmo para dançar. A voz do The Weeknd cantando “es mala amante la fama y no va quererte de verdad” acompanha uma melodia difícil de esquecer, com percussões sensuais, que a tornam mais comercial que as outras.

Em Bulerías, a voz de Rosalía emana um espírito ritualístico, com coros, castanholas, violões e percussões, e o prolongamento trêmulo de vogais, característico de canções flamencas tradicionais. No refrão, em que ecoa “yo soy la niña de fuego”, Rosalía lembra a canção de Manolo Caracol, um dos maiores cantores da história do flamenco, e consegue trabalhar muito bem os ritmos e espaços entre os versos, citando referências de Lil’ Kim, Tego e M.I.A, os dois primeiros artistas de rap e a segunda um dos maiores nomes do pop dos anos 2000, lembrada por suas misturas inesperadas entre pop, música eletrônica e hip hop.

Difícil ouvir um álbum como “Motomami” e não comentar sobre quase todas as músicas. Não podemos deixar de destacar “Hentai”, a primeira canção mais contida e lenta de Motomami, em que Rosalía explora seu lado mais romântico. “Te quiero ride, como a mi bike” - de novo emerge o explorar, procurar, arriscar – dessa vez o outro. O refrão cativante nos remete ao “Blonde”, do Frank Ocean, principalmente com o piano e os agudos dela destacando melodicamente, com violinos tímidos e um drama próprio do R&B mais moderno, também encabeçado muitas vezes por nomes como Kanye West, que costuma usar bastante das batidas aceleradas entre os versos, tocadas do meio para o fim da faixa.

A música “Motomami” já tem uma percussão bem-marcada, com estalos, baixo pesado. Com pouco mais de 1 minuto, a faixa consegue trazer acordes dissonantes, um tanto quanto jazzys, e ajusta no disco como uma passagem. “Diablo” trabalha bem com a ideia de colagens, mudanças de formas e estruturas. A música vai se desenvolvendo e apresentando outras camadas, outras possibilidades, começando com agudos, passando a um reggaeton e por vocalizações próprias do flamenco, e voltando à uma percussão dançante, com synths, ruídos e momentos em que a faixa desacelera, fora os microsampleamentos da voz dela encaixando em vários desses tempos. Já em “Delirio de grandeza” o número é a tradição flamenca em estilo emocionante, com a voz de Rosalía tomando conta de tudo, não apenas pelo alcance, mas pela beleza aveludada que produz. Lembrando as clássicas canções românticas amores perdidos, a melodia nostálgica é também uma espécie de bolero, com texturas originais que dão um ar mais moderno.

É instantâneo para um brasileiro reconhecer os ecos das escolas de samba em “CUuuuute”, que parece transformar o samba num batidão com graves fortes. Eventualmente, esses momentos trocam de posição com a voz de Rosalía, o que deixa transparecer que as músicas foram feitas cheias de detalhes, cuidado e estruturações mais complexas, com espaço para vários tipos de performances em cada faixa. “La Combi Versace”, com Tokischa, tem um maior uso do autotune, mesclado com chocalhos e ambientações electro mais pesadas/darks. Reggaeton de coros, flows de rap e recortes de efeitos, essa é música também usa tendências que podem ser observadas no funk, como o “engasgado” das palavras, por exemplo, e o ritmo da bachata. Fechando o disco, “Sakura” mostra Rosalía como uma voz vinda das profundezas, hipnotizando, encantando. Ela é uma artista completa: não apenas tem criatividade, talento para unir referências multidiversas em seu trabalho – é também uma das cantoras populares com a voz mais preparada do mercado musical.

“G3 N15” e “Como um G” estão entre as canções menos significativas do disco, não por serem ruins, mas por apresentarem pouco que chama atenção em relação às outras. São faixas bonitas, mas que acabam passado “batido” dentro da mistura impactante e agressiva que é Motomami.

Temos flamenco, o uso de castanholas e cantos em coro, violões que remetem a celebrações ritualísticas, o reggaeton pop em Candy, o R&B de Frank Ocean e Kanye West em Hentai, referências ao rap em Saoko, La Combi Versace e outras, e mesmo ao bolero, ao samba, ao funk em “Motomami”. Nada disso foi copiado, mas inspirado, adaptado, recortado e colado em formas diferentes, com experimentações e autonomia. Rosalía cumpre seu objetivo de trazer transformação, vida e movimentação ao pop, um gênero que hoje ganha bastante com variações como o hyperpop e o pop-rap, mas que também perde quando é reproduzido em estruturações idênticas e replicadas em álbuns e mais álbuns, virando pastiche. Seu trabalho ganha novos ares e permite caminhos diferenciados na escuta, formando pares de músicas, podendo ir do começo para o fim ou do fim para o começo. É um caminho aberto, uma experimentação em que há o melhor do clássico e do contemporâneo e muito swaggy (“fuck el estilo”, ela lembra).