← Back Published on

Os degraus, as pessoas e as periferias

O desconforto causado pelas escadarias íngremes e inacessíveis nos extremos de São Paulo faz parte do cotidiano dos moradores locais

Por Amanda Franco, Dandara Bianca, Isabella Vieira e Ivana Fontes

Dentre outras coisas, a cidade de São Paulo pode ser caracterizada pelo seu relevo inconstante, onde morros se misturam às marginais para traçar os limites da cidade. Os escadões, presentes tanto no centro quanto nas áreas periféricas, surgem da necessidade de ligar os pontos altos e baixos. Apesar de servirem para a locomoção das pessoas, existem diferenças entre as escadarias de partes distintas da metrópole.

Enquanto algumas podem ser utilizadas como pontos turísticos devido aos excessos de cuidado por parte da Prefeitura, outras apresentam problemas em sua configuração mínima, o que dificulta o deslocamento de pessoas idosas, por exemplo. As escadarias permitem, assim, discutir a acessibilidade local, a mobilidade urbana e a desigualdade social.

Percebe-se que essa não é uma questão isolada na dinâmica urbana. David Harvey, professor da Universidade da Cidade de Nova York, afirma que vivemos em áreas urbanas divididas e propensas a conflitos. O fato de os escadões em áreas periféricas dificultarem o acesso às moradias, quando o processo não se repete em áreas nobres de semelhantes condições de relevo, não se faz por acaso.

Para a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato, a cidade é uma mercadoria e a segregação espacial é necessária ao mercado imobiliário especulativo. A cidade é palco do “analfabetismo urbanístico”. Com o objetivo de observar essas nuances, foram visitadas escadarias de três zonas periféricas de São Paulo para entender as experiências de quem mora ali e suas possíveis reivindicações.

Vila Rosa

Moradores subindo uma das escadas presentes no bairro da Vila Rosa / Foto: Dandara Bianca

Os primeiros escadões visitados estão na Vila Rosa, bairro da zona norte de São Paulo. A rua Frutoso Viana tem quatro deles: dois em uso e dois interditados. De início, é perceptível que os escadões dessa região não cumprem a mesma função turística dos presentes no centro, como os da Vila Madalena, na zona oeste, onde acontecem ensaios fotográficos ou imagens para apresentações da cidade. Na Vila Rosa, o acesso às casas se dá exclusivamente pelas escadas, assumindo assim um papel maior na locomoção.​​​​​​

Uma das escadarias abandonadas presentes na rua / Foto: Dandara Bianca

A mera realização de tarefas simples do dia a dia torna-se complexa devido aos escadões. “Poucas pessoas sobem, da polícia, médicos… Até para entregar as coisas, quando veem o escadão, voltam”, comenta Alan Souza, de 28 anos. O jovem, que mora ali desde os 2 anos de idade, não vê lugar melhor para se viver. Ele acredita não haver uma solução absoluta para o problema da mobilidade, pois as ruas presentes na região são muito íngremes, o que também prejudica a locomoção dos moradores.

Cleuza, 71, que mora próxima às escadarias há mais de 50 anos, fala que só as subiu uma vez para visitar um familiar. Ela concorda que o bairro não é perigoso, apesar de negligenciado, e que o acesso pelo lado de cima da rua facilitou a vida de algumas pessoas, que à noite podem deixar seus carros lá e descer as escadas, subindo-as pela manhã.

As opiniões dos moradores locais divergem um pouco em relação às dificuldades diárias e até mesmo aos riscos vindos da disposição da região. Em um dos escadões da rua, Vanessa Alves, de 30 anos, sobe e desce todos os dias em horários variados para levar e buscar seus dois filhos pequenos da escola. Prefere não utilizar o caminho superior, pois ele está próximo a um lugar de mata fechada, pertencente à Serra da Cantareira. Além disso, devido ao difícil acesso, há uma concentração de indivíduos fazendo uso de drogas ilícitas.

Garotos brincando no último escadão da rua Frutoso Viana / Foto: Dandara Bianca

Alan Souza contou também que, durante os 26 anos que mora na rua Frutoso Viana, testemunhou poucas medidas de melhoria em relação às escadas. Somente há cinco anos foram instalados os corrimãos. Ele considera que o aperfeiçoamento ajudou as pessoas, mas Vanessa Alves aponta que, durante os três anos que está ali, nunca viu a prefeitura fazer algo nas escadas. “Se um dia eu fosse prefeita, investiria nessa escada aqui”, conclui.

Vila Dalva

Foto de moradores descendo o escadão da Vila Dalva / Foto: Isabella Vieira

Localizada na Zona Oeste de São Paulo, a Vila Dalva é caracterizada pelos seus desníveis. São partes altas e baixas que não se conectam. A presença de escadões que unam esses pontos e facilitem o acesso e a mobilidade dos moradores do bairro é importante. As escadarias da Rua Domingos de Abreu são conhecidas pela falta de iluminação e pelo grande fluxo de pessoas que se utilizam dele para locomoção. Ela é eixo de um bar, algumas casas e o pequeno salão de beleza de Ivanildes da Costa, 48.

A cabelereira relata que seus clientes, especialmente os mais idosos, encontram dificuldades para se deslocarem na escadaria. Ajudá-los a subir e descer o escadão faz parte da rotina do seu trabalho. Limitações físicas, preconceito e medo foram listados por da Costa como motivos para a perda da clientela. Por outro lado, ela também acredita que a presença de um comércio como o seu traz segurança para os pedestres, que normalmente entram no salão quando se sentem ameaçados.

Foto de moradores subindo no escadão da Vila Dalva / Foto: Amanda Franco

Uma das questões mais mencionadas pelos moradores da Vila Dalva foi a inexistência de postes de luz no local. Ivanildes da Costa aponta também que quando queima alguma lâmpada dos poucos postes, é preciso de uma mobilização coletiva para tentar entrar em contato com a prefeitura. “Se não liga, não vem. E tem vezes que demora muito. Você liga uma, cinco, dez vezes. Da última vez, eu gastei mais de um mês ligando toda semana.”

De acordo com Conceição Bastos, de 55 anos, dona de uma das casas presentes ao longo do escadão, a iluminação fraca e amarelada gera desconforto para os moradores da região. Ela conta que, à noite, a luz da escada ilumina as casas ao redor, mas ainda é muito fraca. Isso gera um medo por parte dos moradores para subir e descer os degraus na escuridão.

Escadão da Vila Dalva / Foto: Amanda Franco

Conjunto José Bonifácio

Entre os bairros de Itaquera e Guaianases, no extremo leste de São Paulo, está localizada a estação da CPTM José Bonifácio. É ao lado dela, atravessando a Av. Nagib Farah Maluf, que se encontra um conjunto de três escadões que dão acesso à Praça José Bonifácio. Eles desempenham uma importante função na região, já que ligam a estação, o Conjunto Residencial ali presente, chamado de Cohab 2 pelos moradores, e o outros bairros da região. Diferente das outras duas escadarias já apresentadas aqui, esta tem função apenas de locomoção, não tendo em seu decorrer acesso a moradias.

Escadão que dá acesso à estação da CPTM José Bonifácio. Foto: Ivana Fontes

Dentre as escadas visitadas, as escadas da Zona Leste são as que se encontram em melhor estado, de acordo com os moradores da região. Uma das únicas reclamações relacionadas à estrutura é o fato de que o segundo escadão se encontra sem corrimão. Para Dona Maria Nunes Orantas, que vive no bairro há 55 anos, a escada está em um estado considerável. “Os degraus dela não são muito altos, são normais. Da última vez que eu vi, tava bem conservada”, diz.

Porém, quando o assunto é segurança, as reclamações aumentam. Karolina Fernandes, que mora e tem um estúdio de tatuagens no bairro, conta que não é apenas o escadão que faz da região perigosa, mas também a praça que tem ao lado e as pessoas que costumam usar drogas ali. Além dos inúmeros assaltos que ocorrem na região, já houve casos de estupro. “Do lado do escadão tem uma parte vazia, que é onde ficam os matos, as árvores. Aquela parte é perigosa, pois pode se esconder alguém”, a jovem conta.

Trecho do escadão que se encontra sem corrimão. Foto: Dandara Bianca

Como não existe esse acesso direto para as casas, há outra opção para se transportar até elas: a "perua", mencionada por dona Maria. Segundo ela, a "perua" demora cerca de 10 minutos e estaciona numa avenida que até a deixa mais perto de casa. Entretanto, outras moradoras, como a Karolina, não têm a mesma sorte, já que o transporte a deixaria longe de casa, tendo que fazer um trajeto mais perigoso.

Outra opção no caso de cadeirantes ou pessoas com dificuldades de locomoção é através de um caminho de rampas. Passando das rampas que partem da estação e atravessam a avenida, há mais uma delas, porém de subida bastante íngreme. A disposição dela torna difícil a passagem das cadeiras e grande o risco de quedas. Ela também possui um acesso distante da escada, fazendo com que o caminho se torne bem mais longo.

Apesar desses problemas, foi possível identificar um uso inesperado das escadas. Os moradores revelaram que muitas pessoas as utilizam como forma de se exercitar, principalmente pela manhã. Subir e descer degraus tornou-se um exercício praticado na região, substituindo muitas vezes outras modalidades esportivas, como a academia. Além de ser gratuita, essa atividade também estimula a interação dos membros residentes.

Mulher descendo as escadas com a ajuda do muro. Ao fundo, Conjunto Habitacional José Bonifácio. Foto: Dandara Bianca

A falta de informação sobre quem é responsável pela infraestrutura dos escadões dificulta tanto a coleta de dados quanto a solicitação de serviços. Quando se tenta entrar em contato com a Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes, a linha telefônica é transferida para a Prefeitura e vice-versa.

Se, por um lado, como evidenciaram os moradores, há o descaso da Prefeitura quanto à administração destes escadões, por outro, eles questionam a existência de uma solução absoluta, que acabaria de fato com os problemas causados por essas construções. A instalação de iluminação, a criação de corrimãos e a reforma dos degraus são ações que facilitam a vida daqueles que têm as entradas de suas casas ou comércios na passagem da escadaria. No entanto, transformá-las em ruas pode não ser uma medida efetiva, já que seriam íngremes e dificultariam o andar de pessoas com mobilidade reduzida.

​​​​​​​