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Entre jardins de fumaça [resenha de livro]

O clube dos jardineiros de fumaça (2017) é o livro mais recente da porto alegrense Carol Bensimon, também autora de “Todos nós adorávamos caubóis” (2013), escolhido por Noemi Jaffe para ser enviado aos assinantes da TAG Experiências Literárias no mês de agosto do ano passado.

O mais novo título da escritora foi meu primeiro contato com ela e já uma ótima surpresa. A ideia central é trazer a discussão da legalização da maconha, incluindo os cultivadores, os que necessitam dela para fins medicinais e os que dependem dela para sobreviver. Quase tudo se passa no condado de Mendocino, Califórnia, um lugarzinho costeiro que se enche de gente nos tempos mais ensolarados. “O clube dos jardineiros de fumaça” fala de contracultura, novas tecnologias, poliamor, solidão e violência.

Excepcionalmente detalhista, Carol descreve desde as diferentes espécies vivas na paisagem até a mais despercebida expressão facial. Mas ela não é como Daniel Defoe, que toma páginas e páginas para explicar como montar uma cabana numa ilha deserta. O mundo que Carol nos denuncia é o da pós-modernidade, do bolsonarismo, das mídias digitais, da realidade virtual, dos “start upeiros”, do esvaziamento político.

Há uma narrativa principal, protagonizada por Arthur, mas que ao longo do livro é tomada também por duas mulheres, Tamara e Sylvia. No meio do texto, existem pequenas “biografias” de nomes como Harry Anslinger, Dennis Peron e Robert Randall, que segundo a autora são versões ficcionalizadas de pessoas reais. Esses trechos são recheados de dados e informações históricas, o que prova uma grande pesquisa por parte da escritora e oferecem uma contextualização muito rica para o leitor.

Nos cortes ao longo do livro, Bensimon explicita a hipocrisia que ronda a luta pela legalização da maconha e os interesses econômicos colocados na discussão. Ela não acredita que criminalizar ou não uma substância passe apenas pela questão mercadológica, pois há também muita ideologia envolvida. Exemplo disso é o personagem real-fictício Harry Anslinger, descrito como o “tsar antidrogas”, que trabalhava no FBN, primeiro órgão de combate às drogas. Ele foi responsável por disseminar a ideia de que a substância fazia com que “um bom menino se transformasse num assassino cruel”.

Anslinger decide usar o princípio ativo da maconha para desenvolver a “Droga da Verdade”, que teoricamente faria com que espiões e soldados capturados falassem. O resultado foi que a “Droga da Verdade” não provocou nada muito além de uma vontade incontrolável de rir.

A narrativa de Carol é povoada por esse tipo de elemento irônico. O humor aqui vale para evidenciar situações um tanto quanto ridículas. É o caso de: “O futuro da América deu casa, carro, um gramado para aparar, esposas sorridentes consultando livros de culinária (não para Dennis). O futuro da América deu o Vietnã.

O tom crítico é acompanhado de um ar nostálgico. A pauta das novas tecnologias está muito presente na história, o que insere a escritora como alguém pertencente ao seu tempo – e não apenas isso, mas alguém que quer representar a geração à qual pertence. Ao longo da obra, ela cita elementos pertencentes a uma cultura mais pop, como a série Ghost, por exemplo, ou bandas mais populares dos anos 1990.

Curiosamente, a autora acabou por se encantar pelos arredores do seu romance. O Condado de Mendocino, na Califórnia, é hoje a atual morada de Bensimon, ao que ela explica ser o resultado de ter “entrado vagarosamente dentro do próprio livro”. Ela se mudou em agosto de 2018 com sua namorada e conta que foi se apaixonando pelo lugar, pela paisagem, pela natureza que é muito ‘majestosa e dramática’. O cenário veio ao encontro de muitas das suas referências culturais, como filmes americanos de estrada (a ver: o livro “Todos nós adorávamos caubóis, de Carol, é uma espécie de road trip), a série Twin Peaks, o rock dos anos setenta.

Há um momento do livro em que se conta sobre o sumiço de uma turista que estava em busca de trabalho e acaba sendo vítima de feminicídio. Bensimon diz ter se inspirado num caso real de “desaparecimento” de uma jovem australiana chamada Asha Kreimer. A autora contou que há casos de crimes sexuais ligados à indústria da maconha nessa região da Califórnia: “As mulheres que se envolvem com isso por aqui sem saber onde estão se metendo – sobretudo essas trabalhadoras temporárias que aparecem na época da colheita – podem ficar muito vulneráveis, porque vão trabalhar em áreas extremamente remotas, sem sinal de celular, e muitas vezes sem sequer saber onde estão. Outro dia fui no supermercado e vi duas meninas estrangeiras se aproximarem de um completo estranho e perguntarem se ele sabia onde elas podiam arrumar um trabalho. Essas histórias não necessariamente acabam mal, mas as chances são consideráveis.”

Carol contou também que houve algumas dificuldades linguísticas para adaptar o vocabulário de Mendocino para o português. O nome dado à maconha pode ser “pot” para os mais jovens ou “dope” para um senhor de setenta anos, por exemplo, coisas que se perdem na língua portuguesa. Mas segundo ela, no fundo, a dificuldade maior não é tanto do idioma, mas a construção do cenário na mente do leitor. “É toda uma geografia e uma organização econômica e social que precisa ser apresentada pouco a pouco, e pra que isso aconteça primeiro eu preciso me sentir apta e segura o suficiente para fazer isso. Daí a necessidade de pesquisa e as temporadas em Mendocino”, afirmou.

Sobre os inúmeros fragmentos filosóficos, cito um que chamou minha atenção em particular, quando três personagens (Sylvia, Dave e Arthur) confabulavam sobre Dusk, um pai que abandonou sua filha por muitos anos. Carol faz observações sobre a situação: “Mas, ei, ele teria uma coisa para dizer a Sylvia, Dave e Arthur, se soubesse o que está se passando na mesa perto da entrada, atrás das três mulheres animadas que vão ao Piaci toda sexta-feira: ninguém é melhor do que ninguém e infelizmente você já nasce sob a influência de todas as estrelas mortas, dos genocídios, do choque das placas tectônicas, da cobiça, dos planos fracassados dos outros, suportando a ideia da mortalidade dia após dia, como uma faca que arranha seu pescoço dia após dia, portanto só o que resta é fazer o melhor que se pode dentro desse riscadinho onde nos colocaram. Você. O riscadinho. Não dá pra ir muito além disso”.